Como
autômato, ele passara o dia trabalhando sem olhar as horas. Almoçou brevemente
no restaurante tímido da esquina. Tomou um café morno, lançou-se às notícias
futebolísticas da banca de jornais em frente sem fé. Terminou o dia como um
apito de bonde, de repente estava no ônibus, freneticamente pagando na roleta.
Entre tantas pessoas esquivou-se de um gordo pegajoso. Sentou-se enfim para
esquecer do caminho. Seu pensamento ía lento pela letra de uma música vagabunda
que não lhe animava, nem saía da cabeça.
Naquela
fartura de gente se amontoando como vagens num caixote mal lixado, o motorista
impiedoso provocou, como provoca-se o destino, uma freada, mais que freada, uma
pausa de gravidade num momento em que toda a gelatina humana se perdeu escorrendo,
como lama entre os dedos, formando um aglomerado disforme de rostos e dentes
serrilhados entre gritos abertos, cubistas, os mais ágeis pendurando-se onde
podiam, içando-se do abismo que se formara, clamando largamente por uma mão que
amparasse, os mais velhos indo ao chão, vertiginosamente espalhando-se,
irremediavelmente fadados à solidão da dor nos ossos, e ela, no esquecimento em
que estava, faltou-lhe pela altura o alcance das mãos, cairia como água
represada, pelas escadas do coletivo que parava. Se não fosse um dia daqueles
que sempre acontecem e nunca acontecem em nossa vida.
Ele saiu do
seu transe avisado pelo rápido corpo que tombava a sua frente. E de súbito, de
pronto, sem reconhecer o perigo, sem se reconhecer, mergulhou no assoalho áspero,
sujo e amparou a queda daquela que nada era até então. Da guinchada do metal,
do freio, dos uivos desconexos de todos. Um minuto de silêncio fez-se, larga
respiração.
Tomou um fio
de esperança, como todos temos ao acordar todos os dias. Numa coragem flácida,
alçou-lhe a mão, ergueu-a sutilmente e firme e a olhou até o chão - e lá parou.
Sem fitar-lhe os olhos vagueou com um sorriso entredentes. Para em seguida
fechar-se enfim na sua costumeira sobriedade. Ela que não era esguia e sem
vontade, passou-lhe os olhos rapidamente, abotoando um último botão que se
abrira,
lançou de
seu mais perfeito dom de reconhecer instantaneamente as pessoas e disparou
irracionalmente um obrigada e seu nome?
- José.
- Joana.
Obrigada!
- Disponha. Digo,
às ordens.
- Não sei como
lhe agradecer...
- Não é
nada.
- É sim. Nem
todo mundo se joga no chão assim por outra pessoa. - Sorriu, como manhã.
E o tudo,
que do nada nasce, e só quando há nada brota e só de vez em quando encontra uma
oportunidade rara de se revelar, num rompante bruto e único, como o nascimento
e como a morte, bravura indômita, trovão, uma ruga que na testa se forma irascível,
do lampejo da melhor ideia, da dor de barriga que escapa, do amolecimento de
pernas e...
Como fruta
que cai madura, lágrima que corre solta, como a lâmpada acesa irradia, como um
tiro que abate, um sopro que infla, um grito que ecoa, um susto, uma trinca,
irreversivelmente a esperança faceira se abre e mesmo os simples, mesmo os mais
simples se entregam à possibilidade da felicidade.
Como por
espanto, como se fosse pertinente, como se fosse acordar de um sonho: o amor se
instala, estalando como assoalho, surpresa de balão que estoura, como se fosse
o mais bonito, melhor que o mais lindo, e forte e tênue como águas calmas, como
se fosse um por do sol perfeito, como alegria de caleidoscópio, como rabo que
acena o cão, como a Bahia de Guanabara, mas não tão belo, nem tão eterno. Com
lentos passos se despediram os enamorados, ansiando outrora no ônibus
reencontrarem-se. Como quem reencontra uma fruta da infância, o melhor vestido,
um final feliz.
Letícia Feix – Campinas – 25/06/2012