terça-feira, 26 de junho de 2012

No coletivo

Como autômato, ele passara o dia trabalhando sem olhar as horas. Almoçou brevemente no restaurante tímido da esquina. Tomou um café morno, lançou-se às notícias futebolísticas da banca de jornais em frente sem fé. Terminou o dia como um apito de bonde, de repente estava no ônibus, freneticamente pagando na roleta. Entre tantas pessoas esquivou-se de um gordo pegajoso. Sentou-se enfim para esquecer do caminho. Seu pensamento ía lento pela letra de uma música vagabunda que não lhe animava, nem saía da cabeça. 

Naquela fartura de gente se amontoando como vagens num caixote mal lixado, o motorista impiedoso provocou, como provoca-se o destino, uma freada, mais que freada, uma pausa de gravidade num momento em que toda a gelatina humana se perdeu escorrendo, como lama entre os dedos, formando um aglomerado disforme de rostos e dentes serrilhados entre gritos abertos, cubistas, os mais ágeis pendurando-se onde podiam, içando-se do abismo que se formara, clamando largamente por uma mão que amparasse, os mais velhos indo ao chão, vertiginosamente espalhando-se, irremediavelmente fadados à solidão da dor nos ossos, e ela, no esquecimento em que estava, faltou-lhe pela altura o alcance das mãos, cairia como água represada, pelas escadas do coletivo que parava. Se não fosse um dia daqueles que sempre acontecem e nunca acontecem em nossa vida.

Ele saiu do seu transe avisado pelo rápido corpo que tombava a sua frente. E de súbito, de pronto, sem reconhecer o perigo, sem se reconhecer, mergulhou no assoalho áspero, sujo e amparou a queda daquela que nada era até então. Da guinchada do metal, do freio, dos uivos desconexos de todos. Um minuto de silêncio fez-se, larga respiração.

Tomou um fio de esperança, como todos temos ao acordar todos os dias. Numa coragem flácida, alçou-lhe a mão, ergueu-a sutilmente e firme e a olhou até o chão - e lá parou. Sem fitar-lhe os olhos vagueou com um sorriso entredentes. Para em seguida fechar-se enfim na sua costumeira sobriedade. Ela que não era esguia e sem vontade, passou-lhe os olhos rapidamente, abotoando um último botão que se abrira,
lançou de seu mais perfeito dom de reconhecer instantaneamente as pessoas e disparou irracionalmente um obrigada e seu nome?

- José.
- Joana. Obrigada!
- Disponha. Digo, às ordens.
- Não sei como lhe agradecer...
- Não é nada.
- É sim. Nem todo mundo se joga no chão assim por outra pessoa.  - Sorriu, como manhã.

E o tudo, que do nada nasce, e só quando há nada brota e só de vez em quando encontra uma oportunidade rara de se revelar, num rompante bruto e único, como o nascimento e como a morte, bravura indômita, trovão, uma ruga que na testa se forma irascível, do lampejo da melhor ideia, da dor de barriga que escapa, do amolecimento de pernas e... 

Como fruta que cai madura, lágrima que corre solta, como a lâmpada acesa irradia, como um tiro que abate, um sopro que infla, um grito que ecoa, um susto, uma trinca, irreversivelmente a esperança faceira se abre e mesmo os simples, mesmo os mais simples se entregam à possibilidade da felicidade.

Como por espanto, como se fosse pertinente, como se fosse acordar de um sonho: o amor se instala, estalando como assoalho, surpresa de balão que estoura, como se fosse o mais bonito, melhor que o mais lindo, e forte e tênue como águas calmas, como se fosse um por do sol perfeito, como alegria de caleidoscópio, como rabo que acena o cão, como a Bahia de Guanabara, mas não tão belo, nem tão eterno. Com lentos passos se despediram os enamorados, ansiando outrora no ônibus reencontrarem-se. Como quem reencontra uma fruta da infância, o melhor vestido, um final feliz.

Letícia Feix – Campinas – 25/06/2012